De manhã, à hora do almoço e ao
final do dia.
Invariavelmente, há sempre gente
em sítios específicos aqui na cidade – nos quiosques.
“As pessoas lêem muito”, pensarão
os mais incautos.
Chegam a fazer fila as pessoas
que buscam a sorte de comprar, com um euro ou pouco mais, o descanso eterno.
Não, c’um raio, não é esse descanso
eterno. É aquele alcançado quando temos tanto dinheiro que chega para viver
fartamente esta vida e as próximas 5000 reencarnações.
Raspadinhas – a moda que chegou
para ficar. A malta tenta a sorte em pedacinhos de papel coloridos, em que
temos de raspar (normalmente com moedinhas “pretas”, de 1 ou 2 cêntimos) e
encontrar símbolos iguais, que nos dêem um grande numerário (descontando,
dependendo da quantia, os devidos impostos).
De manhã, a raspadinha pode ser o
passaporte para não ir trabalhar e ter um dia épico. Depois do almoço, maços de
notas caíam bem como digestivo, e não se ia trabalhar. À noite tenta-se de
novo, porque no dia seguinte era perfeito para um “demito-me”, pegar na bóia,
no fato-de-banho e no protector solar e rumar a uma praia paradisíaca, com
cocktails a aparecer, materializando-se do nada.
Claro que há pessoas que ganham.
Nós sabemos porque é assunto digno de notícia, embora quem dê a cara,
pomposamente, sejam os donos dos ditos quiosques e pontos de venda, abençoados
com lotes de milionários papéis coloridos.
A maioria dos comuns mortais vai
jogar uma vida inteira, e nas seguintes encarnações, sem que veja um único
cheque chorudo dos Jogos Santa Casa. E faz sentido não é? Se todos ganhássemos
por dá cá aquela palha, além do problema do excesso de ricos,que iria
desequilibrar a balança comercial, com o aumento das importações (aumentariam
as receitas em impostos, é certo, isso sim), não seria um negócio rentável.
Os jogos que metem cifrões não
são inventados e mantidos só porque é muito divertido e porque se quer uma
avalanche de novos-ricos. Toda a gente sabe, certo?
Às vezes, quando me desloco a um
destes quiosques, normalmente à quinta-feira, e por isso em tempo de
experimentar também as filas dos euromilhonáticos, ouço dos lamentos dirigidos
ao quiosqueiro. “Nunca me sai nada… Ora veja lá, tem prémio? Oh, já sabia…”, ao
qual o senhor do outro lado, o dono dos papéis mágicos, apenas responde “Pois
é. Mais uma?”.
Voltando um pouco atrás, há
pessoas tão descrentes que algum ser não dotado de poderes especiais possa ser
bafejado por tamanha sorte, que já se criaram fóruns de discussão online, onde
se pergunta “Então mas há desse lado algum ganhador? É que eu jogo há imenso
tempo, e nunca ganhei nada”. Há quem responda que antes, quando começou a
jogar, ia-lhe saindo alguma coisita, mas que ultimamente parecem ter fechado as
comportas que jorram dinheiro.
Ainda assim, haverá sempre
vencedores, que passam imediatamente ao patamar dos sortudos, lá num pedestal.
Os pontos de venda fazem
publicidade a si mesmos: “Aqui saiu o 1º prémio/Raspadinha do Natal/ Raspadinha
Pé-de-Meia/ Raspadinha que-deu-tantos-zeros-à-direita-à-conta-de-alguém-que-era-indecente-escrever-aqui.
“Saiu aos outros, e não me há-de
sair a mim?”. Munido de 1 euro, avança-se, determinado. A maioria das vezes não
se ganha. Falta um símbolo, que devia fazer par com outro, e nunca faz. A ânsia
de ficar milionário a raspar um papel, com moedinhas pequeninas, das que
ninguém quer, fica adiada para amanhã.
Sem malas Louis Vuitton, férias
nas Maldivas, mas, sobretudo, sem a hipoteca da casa paga, a mensalidade do
carro, as contas de água, luz e gás, as compras do mês, os medicamentos da
tensão e o material escolar que faz falta aos filhos, segue-se para o trabalho,
quando se tem um.
Não foi desta. Ainda não é desta
que se vira o enguiço.
But…
“The world should be prepare when
I a millionaire.”