sexta-feira, 17 de outubro de 2014

"Sou especial"

Há pessoas diferentes. Especiais.
Noutros tempos, a conotação “especial” de especial pouco tinha.
Pelo contrário, ser especial podia ser uma forma carinhosa de dizer que alguém não bate bem da bola, ou é tantã da cabeça. 
Agora, neste louco século XXI (e dizem que loucos foram os anos 20 do século passado… Pois…) toda a gente é especial.
E, perguntam os caros leitores: quer isto dizer que estamos todos a fritar a batatola?
Quer. Mas isso são outros quinhentos, e por isso a resposta adequada é – não, não estamos. Relaxem.
A história mais recente trouxe modas bem mais virais do que as selfies ou as pulseiras de elásticos. E também mais encoberta. É ela a tendência mundial para ser especial.
Quando ser “especial” era mau, ninguém queria dar o corpo ao manifesto. Não senhor.
“É você que diz que é a Terra que anda à volta do Sol?”. “Mas está tudo doido? Nah, não disse nada disso, homem!”, foi o que respondeu Galileu. E safou-se. Isto porquê? Porque até tinha uma boa teoria (e real) só que não estava disposto a arriscar o pescoço por ela.
Na era dos computadores, da web, das operadoras que baixam os custos no fornecimento de internet, e, consequentemente, dos vídeos virais online, todos querem estar na linha da frente em alguma coisa.
Se fosse hoje, o Galileu tinha um canal no Youtube (apoiado pelo Vaticano, como dizem ter sucedido na vida real), e o vídeo da sua teoria seria viral.
A grande diferença seria mesmo que nunca Galileu rejeitaria a sua ideia, nem a tentaria revogar. Aliás, ainda a apimentaria mais. E estaria na capa dos jornais, e de todas as revistas cor-de-rosa. E nos telejornais nacionais. E nas rádios. E em outdoors. Em tudo, enfim.
Lá estaria ele, a afiar facas, a ripostar contra quem quer que fosse que lhe apontasse uma lasca de unha.
Ora, acontece que proliferam ideias e teorias, vindas de qualquer parte. É comum estarmos a comer um prato de sopa e “olha, cá está uma ideia”.
É por isso que há estudos sobre tudo e mais alguma coisa. Aliás, mesmo a minha declaração anterior era uma boa tese. Ora reparem – “pessoas que comem sopa têm mais ideias revolucionárias”. Estão a ver?
Note-se que, por norma, pensa-se que quem tem ideias são as pessoas especiais – bem ao jeito de Galileu.
Porém, abram-se bocas de espanto, não somos todos Galileu (fomos todos macacos no Facebook, mas o movimento Galileu ainda não chegou). O que significa que por mais ideias práticas que tivermos, boas até, que resolvam o nosso dia-a-dia ou a nossa vida, ninguém garante que vão evitar guerras, fome, catástrofes naturais e o aquecimento global.
Podemos, e devemos ser especiais em tudo que fazemos. Mas vamos deixar-nos disto de querer ser progressista radical, publicar livros e dar entrevistas (ou vender, quiçá).
Não ao “especialismo” colectivo! Não à mudança do mundo através de ideias que nascem e morrem numa mesa de café! Não ao querer ser diferente, muitas vezes de formas absurdas (a internet tem tão bons exemplos disto).
Devíamos ser especiais, em paradoxo. Ou seja, vamos ser especiais de forma normal.
Tenho tão boas ideias…
Espera lá! Ó diabo…

In Jornal Terra Quente (edição 551)