Se há um ano atrás vos escrevia mais cedo e sobre a rentrée, desta vez volto ao ataque, depois de quase dois meses de meditação, para vos dirigir algumas palavras, agora já em pleno Outono.
E adianto o assunto: é sobre algo que acontece por esta altura, normalmente, e que é bastante apreciado por muito e odiado por outros. Bem mais esclarecidos, aposto eu, prossigo em tom melancólico e ritmado para vos confirmar que vamos falar da chuva.
Este fenómeno natural, enviado por entidades superiores, tema de canções e dono de rituais, que incluem dançar de forma estranha, desencadeia nos humanos sentimentos não menos estranhos do que dançar com os braços a abanar e bateres de pé sem música electrónica. É que, mais do que nos fazer ir buscar as galochas e os guarda-chuvas, a chuva é um hipnotismo climatérico que nos faz agir por impulso. Ora pensem lá bem quantas vezes ouviram amigos, colegas de trabalho, familiares, ou meros desconhecidos, a dizer que a chuva dá sono (e que, por isso, gostam de dormir com o barulho da chuva a cair), que têm medo da chuva, que a chuva lhes deixa o cabelo em alvoroço, os constipa, os deixa tristes, românticos ou moles. Imensas vezes, com certeza.
Nos filmes, quando os casais discutem para fazerem as pazes minutos mais à frente, há sempre um dilúvio que lhes agarra os fatos ao corpo e lhes põe as franjas dos cabelos a fazer de caleiras. Nos de terror, a mesma coisa, mas com pessoas a fugir de carro, debaixo de um dilúvio semelhante. Nas tramas históricas, chovia sempre nas últimas batalhas, ou imediatamente a seguir. Noutros, de rir, há cenas que imitam o drama, com chuva à mistura.
Por causa destas cenas cinematográficas, há horrores de pessoas que sempre sonharam beijar alguém à chuva, ou simplesmente mandá-lo à fava no mesmo cenário, apenas e só pela carga emocional associada. Dias de sol são bons para beber cerveja, dias de neve para brincadeiras afoitas, dias de geada para ficar em casa. Dias de chuva são para o que nós quisermos. Pensem nisso nos meses que aí vêm.
A chuva lava, apaga fogos, rega culturas. Mas a mesma água pode levar muros, alagar estradas e moradias, levar barcos para longe, para onde nunca mais voltem, sem amarras. A chuva é um cenário criado naturalmente, mas somos incapazes de a encarar como meras gotas descondensadas, a sair de nuvens cinzentas. E, de todas as coisas que poderia destacar nesta estação do ano, digam lá se a chuva não era a mais límpida e transparente da qual vos poderia falar?
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
Conversas de café, que servem de inspiração para inflamar devaneios. Para acompanhar em directo no informativo digital Notícias do Nordeste, e em diferido, aqui. Em breve, formato livro disponível.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Diário de um ressabiado
Passam dias, meses, anos.
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.
Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus!
Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez em que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados.
E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.
Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos.
É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais.
Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.
É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor.
E, para quê?
“Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”
Publicado originalmente em http://www.noticiasdonordeste.pt/2015/10/diario-de-um-ressabiado.html
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.
Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus!
Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez em que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados.
E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.
Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos.
É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais.
Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.
É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor.
E, para quê?
“Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”
Publicado originalmente em http://www.noticiasdonordeste.pt/2015/10/diario-de-um-ressabiado.html
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
Na rua, pelo amor
“Oque não se espera acontece mais vezes do que o que se espera”, escreveu o dramaturgo Plauto. E tem ele razão.
Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.
Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.
Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que mostra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração.
Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.
Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.
Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.
Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que mostra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração.
Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.
Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Meu querido mês de Agosto (parte II)
O mês de Agosto já está a meio, e
eu ainda não tinha uma linha escrita sobre ele.
“Como é possível?”, perguntam os
caros leitores. É da preguiça, respondo eu. É que este mês tem um fuso horário
próprio, quer se esteja a trabalhar ou não. As pessoas na rua incutem isso, se
não reparam na quantidade de gente de almoça fora todos os dias, que faz anos
todos os dias (e por isso há mais bolos e caixas de bolos, cheias de “Feliz
Aniversário” e de guloseimas), há mais camiões a circular, carregados de
músicos para animar bailes. Há mais de tudo – mais looks extravagantes, mais
morenos, mais morenas e mais calções, usados por pessoas que andam a passo de
caracol, ou, pelo menos, a um ritmo anormal ao que estou habituada.
Ora, as horas andam todas
trocadas. Não sei por que relógio me guiar, porque parece fora de sintonia. É
comum das 9h às 17h não haver nada aberto, e lojas abertas fora de tempo. Nas
prateleiras dos supermercados, que lá estão nos mesmos horários, nada há, tal é
a velocidade a que são esvaziadas, que não há teias de aranha que se acumulem,
como se houvesse a todo o momento aquelas promoções que baixam em 50% o preço
de tudo ou como que fosse época de saldos (alto lá, que é mesmo!). Há carros a
buzinar à quarta-feira, em filas de casórios a caminho de quintas de luxo. Ao
dia de semana, de verdade!
Este ano não falo ressabiada do
Agosto, do querido Agosto, num momento Dino Meira, porque tenho férias
marcadas. Preparem-se, que daqui a uns dias vou ver eu a pilhar as prateleiras
desses supermercados por aí fora, neste nordeste transmontano. E vou levar todo
o pão, todo o queijo, todo o fiambre do mais barato e todas as Pála-Pála. E vou
levar até limas, açúcar amarelo… espera lá! Onde raio está o açúcar amarelo?
Querem lá ver que já não cheguei a tempo? Ó diabo.
Bom, enfim, adiante.
De férias, vou ter paciência para
esperar em filas, para procurar alternativas para os produtos do costume que
evaporaram, para me levantar cedo quando me deitar tarde, para andar devagar e
para dar indicações na rua. Porque, de férias, entrarei no tal fuso horário
agostiano, cheio de particularidades. Vou, até, conseguir ouvir a panóplia de
músicas que me chega neste momento através da janela do trabalho. Algumas que
nunca ouvi, outras que estou farta de ouvir e outras ainda que faria tudo para
que nunca as tivesse ouvido.
Agosto é estranho, Agosto é
lindo. É Agosto. É como um clube de futebol que teima em perder – apresenta
maus resultados, de um modo geral, mas não conseguimos passar sem ele.
Publicado originalmente in Jornal Terra Quente edição 568
Coluna Más Línguas, boas conversas
Foto: Calendário 2014 Bombeiros de Setúbal
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Aquilo que o Diabo é
Há pessoas que têm medo do Diabo. Da figura que traja de vermelho, com cornos revirados e um tridente. Ah! E com um rabo comprido, metediço e pontiagudo.
Eu, pessoalmente, não gosto de tecer considerações sobre quem não conheço.
O Diabo nem sempre se chamou Diabo, e tem outros nomes, que não Diabo. Muitos não são bonitos, mas também, quantas pessoas por aí se queixam do mesmo? Na versão 2.0, o Diabo é um anjo que deu em rebelde. Tinha tudo para ser um anjo como os outros, mas embicou para o lado negro da coisa.
Pode ser visto como um anti-herói em alguns casos. Sem ele, poderia não existir o Drácula e ainda estaríamos aprisionados no Paraíso, onde nem se podem comer maçãs.
O Diabo incita a maldade, porque, contam, é a natureza do Diabo. Só não é pior do que o Diabo, porque ele próprio é, pois, o Diabo em pessoa.
O Diabo tem mafarricos. Os mafarricos são uma espécie de amigos subordinados, que ajudam a concretizar as empreitadas infernais. Também há quem chame mafarrico ao Diabo. Eu encaro como uma redução da personagem, e prefiro a história dos mafarricos, que andam entre o amigo e o lacaio.
O Diabo faz coisas más. É mau. É feio. Sujo, da fuligem do Inferno. No Inferno não há água, e ninguém toma banho. No Inferno sofre-se. O Inferno é a Terra, com mais aquecimento global.
O Diabo provoca medos. O Diabo é o medo. A minha mãe tem medo do Diabo, e não me deixa espanar a toalha do jantar na rua. Crenças dizem que o Diabo, na escuridão que tão bem conhece e acolhe, vem comer as migalhas até à porta de nossa casa. Não acredito que o Diabo coma migalhas. Não tenho, por isso, medo que o Diabo me salte ao caminho ao ouvir as dobradiças a chiar.
O Diabo não se dá bem com os vizinhos. O Diabo entrega-os, pobres inocentes, em troca de benefícios. O Diabo chupa almas, descontraído, como quem bebe um copo de leite ao pequeno-almoço.
O Diabo é o prato desequilibrado de uma balança, que é sempre mais pesada do lado do bem. Porque o Diabo é o mal, e o mal é levezinho.
Em paradoxo, com o Diabo ninguém pode, ainda que ele carregue muita gente, que vai a mando de outros. O Diabo tem muita energia, e está sempre em todo o lado.
O Diabo é o Diabo. O Diabo ri-se nas ventanias, assobia nos telhados enquanto atira pedras aos gatos que não são pretos. E ele vê bem, e tem boa pontaria.
O Diabo espreita nos caminhos, nas encruzilhadas. Juntamos pão e sal num lencinho para o afastar. Fazemos sinais da cruz com água benta.
Não há meio de o Diabo deixar de o ser tinhoso do costume, de olhos amarelos, com uma lágrima no meio.
Ser do contra cansa. O dia virá em que o Diabo vai pedir a reforma, vai embora para outra toca, vai blasfemar para outra freguesia. E nessa altura veremos que o Diabo era só um gajo porreiro, que tinha a mania de andar de vermelho e descuidava a higiene pessoal por falta de tempo. Porque o Diabo tem sentido de humor. Ou Deus. Ou os dois. Bem juntinhos, ou em separados e em segredo, não sei bem, prepararam coisas tão retorcidas e perversas, que só se conjecturam mesmo em cabeças humanas.
Publicado originalmente in Notícias do Nordeste
Eu, pessoalmente, não gosto de tecer considerações sobre quem não conheço.
O Diabo nem sempre se chamou Diabo, e tem outros nomes, que não Diabo. Muitos não são bonitos, mas também, quantas pessoas por aí se queixam do mesmo? Na versão 2.0, o Diabo é um anjo que deu em rebelde. Tinha tudo para ser um anjo como os outros, mas embicou para o lado negro da coisa.
Pode ser visto como um anti-herói em alguns casos. Sem ele, poderia não existir o Drácula e ainda estaríamos aprisionados no Paraíso, onde nem se podem comer maçãs.
O Diabo incita a maldade, porque, contam, é a natureza do Diabo. Só não é pior do que o Diabo, porque ele próprio é, pois, o Diabo em pessoa.
O Diabo tem mafarricos. Os mafarricos são uma espécie de amigos subordinados, que ajudam a concretizar as empreitadas infernais. Também há quem chame mafarrico ao Diabo. Eu encaro como uma redução da personagem, e prefiro a história dos mafarricos, que andam entre o amigo e o lacaio.
O Diabo faz coisas más. É mau. É feio. Sujo, da fuligem do Inferno. No Inferno não há água, e ninguém toma banho. No Inferno sofre-se. O Inferno é a Terra, com mais aquecimento global.
O Diabo provoca medos. O Diabo é o medo. A minha mãe tem medo do Diabo, e não me deixa espanar a toalha do jantar na rua. Crenças dizem que o Diabo, na escuridão que tão bem conhece e acolhe, vem comer as migalhas até à porta de nossa casa. Não acredito que o Diabo coma migalhas. Não tenho, por isso, medo que o Diabo me salte ao caminho ao ouvir as dobradiças a chiar.
O Diabo não se dá bem com os vizinhos. O Diabo entrega-os, pobres inocentes, em troca de benefícios. O Diabo chupa almas, descontraído, como quem bebe um copo de leite ao pequeno-almoço.
O Diabo é o prato desequilibrado de uma balança, que é sempre mais pesada do lado do bem. Porque o Diabo é o mal, e o mal é levezinho.
Em paradoxo, com o Diabo ninguém pode, ainda que ele carregue muita gente, que vai a mando de outros. O Diabo tem muita energia, e está sempre em todo o lado.
O Diabo é o Diabo. O Diabo ri-se nas ventanias, assobia nos telhados enquanto atira pedras aos gatos que não são pretos. E ele vê bem, e tem boa pontaria.
O Diabo espreita nos caminhos, nas encruzilhadas. Juntamos pão e sal num lencinho para o afastar. Fazemos sinais da cruz com água benta.
Não há meio de o Diabo deixar de o ser tinhoso do costume, de olhos amarelos, com uma lágrima no meio.
Ser do contra cansa. O dia virá em que o Diabo vai pedir a reforma, vai embora para outra toca, vai blasfemar para outra freguesia. E nessa altura veremos que o Diabo era só um gajo porreiro, que tinha a mania de andar de vermelho e descuidava a higiene pessoal por falta de tempo. Porque o Diabo tem sentido de humor. Ou Deus. Ou os dois. Bem juntinhos, ou em separados e em segredo, não sei bem, prepararam coisas tão retorcidas e perversas, que só se conjecturam mesmo em cabeças humanas.
Publicado originalmente in Notícias do Nordeste
quinta-feira, 18 de junho de 2015
A contar estrelas
Há uns dias, em mais um jogo das
redes sociais, fui informada de que era uma “contadora de estrelas cadentes”
profissional, responsável por me certificar que os sonhos dos outros se tornam
reais. Sou só eu que acho isto fofo?
Se a ideia chega a Hollywood,
vamos ter mais um filme de chorar baba e ranho e com muitas nomeações da
Academia. Até estou a imaginar o final – ele morre porque vê uma estrela
cadente e deseja que ela tenha uma vida longa e feliz, em detrimento da própria
felicidade (claro que antes já tinha havido uma crise das estrelas, que tinham
deixado de cair com a mesma frequência, e por isso tornam-se tão raras que era
necessário ter contadores profissionais para não perder nenhuma. Eu sei, estou
a deixar fugir uma carreira de argumentista).
Bom, claro que na vida real tal
não seria possível. Não acho que a queda de estrelas esteja em causa. Não sei
quantas caem por dia, mas penso que ainda haja um rácio saudável. Já quanto à
realização de desejos, prefiro manter o misticismo/romantismo/fofismo e
acreditar que, se não os tornam verdadeiros, pelo menos dão um empurrãozinho.
Apenas não acredito que seria possível alguém “apanhar” estrelas para outra
pessoa, porque o ser humano é tão egoísta que não ia pedir desejos para outro.
Ora, poderiam dizem que este
trabalho, por ser à noite, seria muito bem pago, e, por isso, qualquer um
desempenharia bem este papel. Eu acho que não. Basta pensar nas vezes em que
desejamos coisas completamente alheias ao trabalho durante as horas de
expediente. E se um destes desejos coincidisse com a queda de uma estrela, lá
se ia a oportunidade de um cliente. Ou se havia uma troca de desejos? Havia
depois pessoas ricas que só queriam super-poderes, e super-heróis que só
queriam era uma casa com piscina e um Ferrari na garagem.
Se pedir para nós é difícil, nem
quero pensar como seria gerir uma empresa deste calibre. Desde a definição dos
requisitos para pedir desejos até à tabela de preços. Claro que pedir desejos
por encomenda tinha de ter requisitos, ou então alguém poderia desejar o fim
precoce do petróleo ou uma explosão no sistema solar, e era uma grande chatice.
E alguns desejos seriam impagáveis. Por isso ia haver um aumento dos
empréstimos no banco e a venda de objectos em ouros.
Mas estou a fugir ao lado
romântico da questão. Quando, debaixo de um céu de Verão, vemos uma estrela
cadente, brilhante como um farol, não pensamos em dinheiros, em viagens ou em
casas com piscina. Pensamos, sim, naquele amor que não é correspondido ou que
queríamos manter para sempre. As estrelas são românticas, e visto ao perto, com
telescópios especiais, têm forma de coração. As estrelas morrem e caem para
guardar segredos eternos de amantes. Não aguentam a vida solitária que levam,
lá em cima, talvez, o que pode
ser outra causa de colapso.
E, o melhor de tudo, é que o céu
é de todos. Todos podem contar estrelas e pedir desejos, sem que seja preciso
contadores profissionais de estrelas cadentes para intercederem por nós. Por
isso, se já tentou de tudo, não custa pegar num banquinho e em alguma
paciência, e tentar a sorte, a contemplar o firmamento.
Publicado originalmente in Notícias do Nordeste
quarta-feira, 10 de junho de 2015
Tudo bons rapazes, como nos filmes
Como já tive oportunidade de
dizer em outros textos, tenho o dom da coscuvilhice passiva. Este dom
permite-me ouvir conversas de outras pessoas (que, por norma, falam uns
decibéis acima do permito por lei), com as quais me cruzo no quotidiano.
Anos de experiências, de estudos
quase científicos, que me permitem concluir que somos todos demasiado bons uns
para os outros.
Não “bons” de benevolentes, de
querer fazer o bem. Não. O que acontece é que todo o ser humano é um Robocop,
um deus, um mártir ou outro semelhante. Por isso, nunca vamos encontrar alguém
que nos mereça, por sermos tão bons que até dói olhar de frente.
O “vais encontrar alguém que te
mereça” é o novo “não és tu, sou eu”. E esta nova corrente no amor é muito mais
explicativa do que o “não és tu, sou eu”. É uma evolução natural de anos e anos
de tentativas falhadas de terminar airosamente uma relação.
Repare-se que o “não és tu, sou
eu”, deixa muita brechas, muitas arestas afiadinhas. Muitas pessoas viam nessa
frase um gesto não de altruísmo mas de egoísmo, e uma forma de dizer “tens
tantos defeitos que não te aguento mais. Preciso de coisas diferentes. Tu estás
bem assim, nesse registo pão sem sal. Eu é que não estou para te aturar. Livra!”.
Já o “vais encontrar alguém que te mereça” é muito mais definitivo e de fácil
assimilação (como as papas para crianças).
Este Nestum das relações hodiernas,
pode, tal como a papa, ter upgrades.
E o “não és tu, sou eu” nesta versão moderna pode ser combinado. Um exemplo:
“Vais encontrar alguém que te mereça. És lindo e maravilhoso, tão inteligente.”
Só não pode ser exagerado, ou parece uma crise de auto-estima e não o término
de uma relação.
Se esta evolução resulta? Resulta
pois. Tenho mostras derivadas das minhas sessões de cusquice passiva, onde ouço
conversas sem querer. Numa esplanada, duas amigas a conversar: “E tu acreditas
que ele ainda me ligou?”. A amiga retorque, no tom de indignação feminino que
só uma amiga pode ter: “A sério? E o que te disse?”. O óbvio: “Que sabia que
não me merecia. Que eu era a pessoa mais fantástica que ele tinha conhecido,
mas que eu ia encontrar alguém que, de facto, me mereça.”. “E tu?”, prossegue a
amiga. “Eu? Disse que sabia tudo isso, e que era pena que não desse, e que ia
seguir com a minha vida”.
É a prova provada de que esta
técnica anda por aí a circular. Não tarda vai haver pins, bonés e t-shirts
alusivos. Tenho em crer que há bruxos que, em vez de receitar mezinhas e mortes
de galinhas pretas, escrevem somente num papel “vais encontrar alguém que te
mereça”, com a garantia de que, se o dizer à pessoa de quem se quer livrar de
forma convicta, ela vai mesmo deixa-lhe a sola.
Depois fica a certeza de que uma
relação morreu. Das cinzas nasceu um deus. E foram todos felizes, no final das
contas.
E será que vamos encontrar alguém
que nos mereça? Eu acho que sim, a não ser que nos queiramos livrar dessa
pessoa. E aí, como não merece a pena, também nós vamos vaticinar “vais
encontrar alguém que te mereça”, só que longe.
In "Más Línguas, boas conversas"
Jornal Terra Quente
sábado, 16 de maio de 2015
Línguas de perguntador
No outro dia, estive a ver, à
noite e com os cobertores até às orelhas (só com olhinhos de fora, a luzir, e o
nariz, para respirar), um daqueles filmes de terror, cheios de suspense e
coisas que são, claramente, p’lo mal.
Após várias tentativas de não
ver, se me privar daquelas imagens que me deixam com pele de galinha, começaram
a passar as letrinhas do fim, e percebi que a vi tudo apenas por curiosidade.
O tal filme, importa dizer, era
sobre um vírus manhoso, que circulava na internet, e por onde viajavam
fantasmas. Não que esteja interessada em ser crítica cinematográfica, mas esta
experiência fez-me perceber que não há maior vírus do que a curiosidade.
Ser curioso, podem dizer, é uma
qualidade do ser humano. Eu cá digo que não é. É antes algo contagioso. É o que
nos leva a juntar-nos a uma multidão que mira qualquer coisa. Não é a
curiosidade de ver, de saber o que se passa. Antes, repare-se, é o facto de
alguém antes de nós ter sido curioso que nos leva a sê-lo também. Como dizia
eu, alguém nos “pegou” isso.
Para reforçar esta ideia, outro
exemplo do quotidiano. Se alguém encontra dinheiro na rua, num sítio onde
passaram dezenas de pessoas antes, que ignoraram a nota no chão, não lhe vamos
chamar “curioso” ou sequer “atento. Chamamos-lhe como? Pois é. “Sortudo”.
Voltando à minha experiência com
filmes que me dão más noites, não estou em contra-senso – não vi o filme por
querer saber como acaba, por ser curiosa por iniciativa própria. Só que, como
li comentários de algumas pessoas sobre o dito filme, indaguei-me sobre a
veracidade do que escreveu quem não conheço, (transmissão pessoa-pessoa).
Outra coisa engraçada de
bisbilhoteiro, e sobre a qual os filmes de terror nos ensinam muitos, é que é
extremamente perigoso porque nos torna…vá lá, à falta de melhor palavra,
torna-nos estúpidos. Se algo estranho está a acontecer, qual é o sentido de ir
lá ver? Se ouvimos uma moto-serra, devemos correr para o lado oposto, coisa que
raramente se verifica. Portanto, a linha que separa a curiosidade da estupidez
claramente não existe, ou está distorcida.
A curiosidade, ainda, desperta em
nós sentimentos mais estranhos ainda, que neste momento nem encontro uma
palavra para descrever. Algo como, repare-se: achamos legítimo espreitar pela
janela de nossa casa, porque estamos em nossa propriedade; mas ficamos
ofendidos se apanhamos um indivíduo à cuca, pendurado na nossa janela. Ora,
relembro que a rua também é propriedade de todos, por isso, é merecedora de
privacidade, certo? Então por que não podemos ser todos curiosos de igual
forma? Nós fomos curiosos, o outro foi “cusco”, que é o mesmo, mas com
maliciosa conotação.
Dizem que ser curioso nos pode
levar longe, que assim aprendemos mais, que ajuda a nunca estagnar. Quanto a
vós, não sei. A mim ser curiosa já me valeu picadelas, cortes na pele, de fazer
sangrar, e respostas atravessadas.
E se ser curioso fosse assim tão
bom, a minha mãe não me teria ameaçado tantas vezes de que o jantar nessa noite
seriam “línguas de perguntador”.
In Jornal Terra Quente
Coluna Más Línguas, boas conversas
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
Cartas, sinas e videntes
Há muito tempo que não via
televisão de forma regular. Agora que o tenho feito assiduamente, percebo
porque não sentia grande falta da caixinha mágica.
Faltam, por certo, 20 minutos, ou
25, para as 9 horas da manhã. Estou sentada à mesa da cozinha, sem companhia, a
bebericar o leite com chocolate de sempre, e um pãozito com manteiga. A
televisão em frente, ligada num canal onde lêem o futuro nas cartas. As cartas
são grandes. Deve ser para quem, como eu, já sente falta da vista.
Oferecem coisas, neste programa.
Caixas cheias de objectos que prometem afastar o mau-olhado, “só para si. Já
viu que bom?”. “Uau! Que bom!”, respondo, sem verbalizar uma palavra, devido ao
entusiasmo que me invadiu naquele momento, entre uma dentada no pão e uma
golada de leite.
A senhora continua, a receber
telefonemas, e a dar mágicos conselhos, que me fazem perder a crença na raça
humana. Uma senhora liga. Está doente, e quer saber se as cartas sabem se ela
vai voltar a ser operada ou não. Claro que não sabem. “Não deve voltar a ser. Mas, tenha cuidado! Não volte a ter trabalhos
pesados.” Palavras sábias, que se estendem a uma outra senhora, que quer saber
se a filha se vai divorciar ou não. “Não se meta nisso.”, diz a senhora que
sabe do futuro. O genro agradeceu e rezou um padre-nosso. “Ou ele muda ou a sua
filha vai tomar uma atitude. Ela não vai aturar isso muito tempo.”, continua a cartomante. “Mas ele não lhe bate!”,
ouve-se do outro lado da linha, com uma certa indignação. “Eu sei.”, vem em
resposta.
Claro que sabe. Ou não. E dei por
mim a sorrir. A sorrir, não por acreditar em leituras nas cartas, ou achar
correcto que haja linhas de valor acrescentado feitas para enganar pessoas, que
escarrapacham a sua vida, na esperança de soluções milagreiras. Sorrio por esta
ânsia de saber o futuro.
Lembro-me de uma tarde soalheira,
na varanda da minha avó materna. Um vestido de Verão, umas pernas quentes pelo
sol, e uma vizinha que me contava histórias. Uma senhora que foi menina de
responsabilidade – uma ajudante de bruxa. A dita bruxa dava-lhe comida, aquela
que os pais não tinham em fartura para lhe dar, a ela e aos irmãos. Em troca,
um favor. Uma casa típica transmontana, onde os clientes, que vinham saber
sobre o fadário, esperavam no curral. A bruxa, de profissão, esperava num
compartimento ao cimo das escadas. A menina, de ar inocente, perguntava às
pessoas ao que vinham. Sem telefones, e cara-a-cara, num precedente dos programas
televisivos que adivinham o porvir, o desespero vivido deixava escapar o motivo
daquela visita ao mundo do oculto. A menina ouvia, fixava o rosto do queixoso,
e contava à bruxa, que mais tarde, num acto de adivinhação supremo, iria ver,
apenas com um golpe de vista, as maleitas que atormentam cada diabo.
Ir à bruxa não devia ser um
serviço em conta. Nem hoje o deve ser, mesmo por 60 cêntimos + IVA. “Eu sei o
que é isso.”, diz a senhora das
cartas.
In Jornal Terra Quente (edição 558)
Coluna "Más línguas, boas conversas"
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