sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Cartas, sinas e videntes

Há muito tempo que não via televisão de forma regular. Agora que o tenho feito assiduamente, percebo porque não sentia grande falta da caixinha mágica.
Faltam, por certo, 20 minutos, ou 25, para as 9 horas da manhã. Estou sentada à mesa da cozinha, sem companhia, a bebericar o leite com chocolate de sempre, e um pãozito com manteiga. A televisão em frente, ligada num canal onde lêem o futuro nas cartas. As cartas são grandes. Deve ser para quem, como eu, já sente falta da vista.
Oferecem coisas, neste programa. Caixas cheias de objectos que prometem afastar o mau-olhado, “só para si. Já viu que bom?”. “Uau! Que bom!”, respondo, sem verbalizar uma palavra, devido ao entusiasmo que me invadiu naquele momento, entre uma dentada no pão e uma golada de leite.
A senhora continua, a receber telefonemas, e a dar mágicos conselhos, que me fazem perder a crença na raça humana. Uma senhora liga. Está doente, e quer saber se as cartas sabem se ela vai voltar a ser operada ou não. Claro que não sabem. “Não deve voltar a ser. Mas, tenha cuidado! Não volte a ter trabalhos pesados.” Palavras sábias, que se estendem a uma outra senhora, que quer saber se a filha se vai divorciar ou não. “Não se meta nisso.”, diz a senhora que sabe do futuro. O genro agradeceu e rezou um padre-nosso. “Ou ele muda ou a sua filha vai tomar uma atitude. Ela não vai aturar isso muito tempo.”, continua a cartomante. “Mas ele não lhe bate!”, ouve-se do outro lado da linha, com uma certa indignação. “Eu sei.”, vem em resposta.
Claro que sabe. Ou não. E dei por mim a sorrir. A sorrir, não por acreditar em leituras nas cartas, ou achar correcto que haja linhas de valor acrescentado feitas para enganar pessoas, que escarrapacham a sua vida, na esperança de soluções milagreiras. Sorrio por esta ânsia de saber o futuro.
Lembro-me de uma tarde soalheira, na varanda da minha avó materna. Um vestido de Verão, umas pernas quentes pelo sol, e uma vizinha que me contava histórias. Uma senhora que foi menina de responsabilidade – uma ajudante de bruxa. A dita bruxa dava-lhe comida, aquela que os pais não tinham em fartura para lhe dar, a ela e aos irmãos. Em troca, um favor. Uma casa típica transmontana, onde os clientes, que vinham saber sobre o fadário, esperavam no curral. A bruxa, de profissão, esperava num compartimento ao cimo das escadas. A menina, de ar inocente, perguntava às pessoas ao que vinham. Sem telefones, e cara-a-cara, num precedente dos programas televisivos que adivinham o porvir, o desespero vivido deixava escapar o motivo daquela visita ao mundo do oculto. A menina ouvia, fixava o rosto do queixoso, e contava à bruxa, que mais tarde, num acto de adivinhação supremo, iria ver, apenas com um golpe de vista, as maleitas que atormentam cada diabo.

Ir à bruxa não devia ser um serviço em conta. Nem hoje o deve ser, mesmo por 60 cêntimos + IVA. “Eu sei o que é isso.”, diz a senhora das cartas.


In Jornal Terra Quente (edição 558)

Coluna "Más línguas, boas conversas"