quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O dia em que passei a ser “quatro-olhos”


Durante 10 anos, tentei.
Desmesuradamente, tentei.
Esforços falhados ficam para trás. Uma investida foi bem-sucedida. Para trás ficam as horas a ler com o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, dias colada ao ecrã da televisão e tempos infindáveis sentada em frente a um computador.
Ainda me lembro tão bem (até porque foi há duas semanas) do anúncio de que seria mesmo desta. O optometrista (palavra que me custa a dizer, pareço um motor de rega a tentar arrancar com pouca gasolina) disse-me assim: “Ligeiro astigmatismo no olho direito. Para melhor conforto visual é melhor usar óculos graduados, de descanso.”
E eu sorri. “Finalmente, irra!”, pensei eu. Agradeci à saga Harry Potter (que cresci a ler), e à J.K.Rowling, bem como a outros títulos e autores que li na calada da noite, e ainda aos programas de TV que vi, a meio palmo de distância, de boca aberta.
Os óculos dão estatuto e parecem tornar a malta mais inteligente. E eu queria pertencer a esse grupo. Li na internet (ainda sem óculos) que metade da população portuguesa precisa, de algum modo, de óculos. Entre alguma coisa como 5 milhões e 200 mil portugueses, tinha eu que pertencer aos outros?
Antes fazia parte do grupo de cromos que têm óculos com lentes de plástico para fingir que vêem mal, e assim estão na moda (porque os óculos são um acessório de moda hoje em dia).
Agora já não.
Escolher os meus óculos (pretos e quadrados) foi tarefa fácil. Faço parte do grupo de afortunadas pessoas a quem tudo fica bem (sempre incluída em minorias).
Depois, veio o horror!
Os óculos estão sempre sujos. Sinto que uso óculos de mergulho, no meio de um mar de algas, e não óculos cuja missão era, supostamente, descansar-me.
Parece que nada os deixa asseados – água e sabão resultam, mas secar é uma tormenta; as ditas toalhitas próprias são gordurosas na sua maioria, e dizem-me que líquido limpa-vidros e jornal não é boa apologia; o paninho que vem na caixa nem sempre se revela eficaz, principalmente no dia em que perdi a caixa dos óculos, com ele lá dentro. Nesse dia não me serviu mesmo para nada.
E a chuva? Ai, a chuva. O pó, imagino, deve ser outra dor de cabeça.
Os problemas não ficam por aqui. Não sei se é da falta de prática, mas quando cumprimento as pessoas com dois beijinhos, sinto que as agrido com a armação (sei que esta frase pode ser facilmente convertida numa piada dita de mau gosto. Não o façam).
Bato em imensa coisa. O meu rosto agora é maior. É como virar um camião numa rua estreita – tudo é um potencial perigo.
Passei pela tormenta de sentir a cabeça esmagada pelas hastes. É incómodo, de facto. E agora, que me estão mais largos, tenho medo que caiam e se estatelem num paralelo qualquer.
Às vezes, confesso, em casa, esqueço-me de os pôr para ler. Outras vezes, esqueço-me de os tirar.
Mas gosto de ser “vidrinhos”, “caixa de óculos” e “quatro-olhos”. Reparei que mais malta me trata por “senhora” (não que goste, mas devo parecer mais velha, sei lá), o que é bom para quem galopa para os 30.

Só é pena dar tanto trabalho, ser quatro-olhos. 

Más línguas, boas conversas.

In Jornal Terra Quente (15 de Setembro de 2014)