quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Dosímetro

Honestamente, não me lembro de ter tido uma paixão correspondida. Se tive, venham agora, neste momento, mil cupidos enraivecidos dar-me flechadas.
Sou capaz, vagamente, de ter gostado de pessoas que gostaram de mim, ao mesmo tempo, em sintonia. Mas, como o dosímetro que mede o gostar não tem taras confiáveis, ficamos sempre no que nos parece. Se calhar às vezes gostei eu mais, outras vezes foram os outros a sentir algo que eu não sentia. Noutras ocasiões, lá no fundo, ninguém gostava de ninguém, naquilo a que eu chamo uma bebedeira de amor, na qual o que custa mesmo é a ressaca.
Ontem, no supermercado, depois daqueles bips que anunciam a voz de uma senhora operadora: “Filipa Sarmento à caixa central… ó ó…”, interrupção. Retoma: “Filipa Nascimento à caixa central”. Porra! Apelido errado! Não há, contudo, consenso sobre se desta foi de vez. Então, vem o terceiro chamado: “Filipa à caixa central”. Repare-se que o importante da questão é que a Filipa compareça. Mais de resto, quem raio fosse a Filipa a aparecer, era lucro. A Filipa, uma espécie ao acaso, era necessária. “E o que tem a ver a Filipa com esta história?”, perguntam-me.
Tudo. A Filipa é a solução para todos os amores falhados. É que parece que estamos mais preocupados em que haja alguém, do que se esse alguém é realmente válido. Por isso que andamos apinhados de relações que não sabemos muito bem o que são, se vão ser. É que, dizemos, nem queremos que sejam relações. Vão sendo, sejam o que for. Vamos tendo. O tramado é que tudo que inclua o verbo “ser” e “ter” configura uma série de questões morais, pelo menos, que convém respeitar.
Nem há, às vezes, tempo de avaliar a pessoa. Vê-se na diagonal, e chuta-se para canto. Neste Mundo, é assim. Não nos valem preciosismos. Só convém lembrar que, se escolhemos entrar na vida de alguém, é importante dizer-lhe se estivermos de saída. Estilo uma sala de pânico, em que temos que informar o compartimento, ao tocar em determinados botões, de que já não queremos mais estar ali. É só uma ajuda, quando se trata de acertar dosagens de gostar.
Não há preciosismo no dosímetro do gostar. É tudo a olho. “Ah, mas é assim que deve ser”.
É, pois, se não caírem na tentação de deixar cair açúcar demais, ou se não se esquecerem na receita no forno (as relações amorosas podem ser sempre comparadas com comida. Resulta!). O problema maior, além das dosagens mal medidas, é não deixar a “massa” levedar: demora, mas faz toda a diferença.