domingo, 19 de janeiro de 2014

O pão do dia

Não há nada que me dê mais consolação (prazer sádico, até) do que entrar numa padaria e pedir pão.
Claro que gosto de pão. Não conheço ninguém que não goste de pão. Pão é um gosto universal. É um bem essencial, de primeira necessidade.
Mas não é só aí que reside a tal consolação, em ser uma das felizardas do mundo que pode comprar pão.
Isto do pão tem uma magia associada, que é esta – o pão quer-se do dia. Quando cruzamos a porta de uma padaria, temos estampado no rosto que queremos esse mesmo do dia, o mais fresco, que, ao mesmo tempo, se estiver quente, agradecemos.
Ninguém nos dirá: “tenho ali um pão de sementes com um mês que está um mimo.” Ninguém nos perguntará: “mas quer pão de hoje?”. Não. Que parvoíce. É inerente ao pão. São indissociáveis.
Numa destas manhãs, enquanto esperava na fila para comprar, justamente, pão, aconteceu-me a maquinação de uma analogia, que me deixou ora inquieta, ora preocupada, mas no fundo, mais sábia.
Não só o pão se quer do dia. Os sentimentos também.
Sentir algo por alguém (da mera amizade ao amor onírico) acontece todos os dias. Várias vezes por dia. Como as fornadas de pão.
Não vamos ser amigos de alguém uma vez por mês, ou dar amor com dias atrasados. Faz lá agora sentido? Caramba!
Pão e sentimentos, aconchegados no mesmo saquinho de papel.
Não se guardam para os saldos. É no dia que eles são bons, suculentos. Não são acumuláveis em stock de armazém. Não se empacotam para usar quando calhar, ou para a próxima estação.
Sentimentos são como o pão. São sim senhor.
Podem e devem ser partilhados. Alimentam. São figura obrigatória (e sentimos a falta, se eles não estão). Ficam bem em qualquer lado. Sabem bem a qualquer hora. Acompanham bem com tudo.
Não me venham com as modernices das arcas congeladoras. Comprar pão para congelar é possível. E com classe energética AAA+. Depois, quando precisamos, metemos no microondas, esperamos uns minutos. E já está.
Mas, não mintam, nunca terá o mesmo sabor do pão do dia. Não é estaladiço, nem cheira à farinha da padaria. É um desenrasque, que perde qualidade.
O mesmo acontece com os nossos sentimentos. Não podemos congelá-los e esperar que sejam necessários. Ou que queiramos utilizá-los. Se sentimos “naquele” dia em específico, é porque é imprescindível, porque faz falta. Amanhã estarão rançosos. Já não farão o mesmo sentido que fariam hoje.
O que separa o pão dos sentimentos é simples: os sentimentos não aceitam encomendas. Não podemos pedir 20 doses de amor, e passar mais tarde para levar nos tais saquinhos de papel. São, isso sim, genuínos. E não devem levar fermento.
E, foi nessa mesma fila, enquanto esperava para comprar pão, que percebi que os melhores sentimentos são como o melhor pão: são produzidos e consumidos num só dia.
Não vamos guardá-los para amanhã, vamos experienciá-los, vivê-los e dizê-los já hoje – porque foi hoje que sentimentos, e não amanhã, nem no próximo mês ou ano.
Amanhã haverá mais (há sempre mais), e nós estaremos todos na fila, expectantes, antes que voem da prateleira.



Publicado in Jornal Terra Quente

Coluna "Más línguas, boas conversas"