quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Está a chover, e agora?

Se há um ano atrás vos escrevia mais cedo e sobre a rentrée, desta vez volto ao ataque, depois de quase dois meses de meditação, para vos dirigir algumas palavras, agora já em pleno Outono. 

E adianto o assunto: é sobre algo que acontece por esta altura, normalmente, e que é bastante apreciado por muito e odiado por outros. Bem mais esclarecidos, aposto eu, prossigo em tom melancólico e ritmado para vos confirmar que vamos falar da chuva.

Este fenómeno natural, enviado por entidades superiores, tema de canções e dono de rituais, que incluem dançar de forma estranha, desencadeia nos humanos sentimentos não menos estranhos do que dançar com os braços a abanar e bateres de pé sem música electrónica. É que, mais do que nos fazer ir buscar as galochas e os guarda-chuvas, a chuva é um hipnotismo climatérico que nos faz agir por impulso. Ora pensem lá bem quantas vezes ouviram amigos, colegas de trabalho, familiares, ou meros desconhecidos, a dizer que a chuva dá sono (e que, por isso, gostam de dormir com o barulho da chuva a cair), que têm medo da chuva, que a chuva lhes deixa o cabelo em alvoroço, os constipa, os deixa tristes, românticos ou moles. Imensas vezes, com certeza.

Nos filmes, quando os casais discutem para fazerem as pazes minutos mais à frente, há sempre um dilúvio que lhes agarra os fatos ao corpo e lhes põe as franjas dos cabelos a fazer de caleiras. Nos de terror, a mesma coisa, mas com pessoas a fugir de carro, debaixo de um dilúvio semelhante. Nas tramas históricas, chovia sempre nas últimas batalhas, ou imediatamente a seguir. Noutros, de rir, há cenas que imitam o drama, com chuva à mistura.

Por causa destas cenas cinematográficas, há horrores de pessoas que sempre sonharam beijar alguém à chuva, ou simplesmente mandá-lo à fava no mesmo cenário, apenas e só pela carga emocional associada. Dias de sol são bons para beber cerveja, dias de neve para brincadeiras afoitas, dias de geada para ficar em casa. Dias de chuva são para o que nós quisermos. Pensem nisso nos meses que aí vêm.

A chuva lava, apaga fogos, rega culturas. Mas a mesma água pode levar muros, alagar estradas e moradias, levar barcos para longe, para onde nunca mais voltem, sem amarras. A chuva é um cenário criado naturalmente, mas somos incapazes de a encarar como meras gotas descondensadas, a sair de nuvens cinzentas. E, de todas as coisas que poderia destacar nesta estação do ano, digam lá se a chuva não era a mais límpida e transparente da qual vos poderia falar?


Publicado originalmente em Notícias do Nordeste

Diário de um ressabiado

Passam dias, meses, anos.
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.

Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus! 

Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez em que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados. 

E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.

Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos. 

É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais. 

Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.

É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor.

E, para quê? 

“Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”

Publicado originalmente em http://www.noticiasdonordeste.pt/2015/10/diario-de-um-ressabiado.html

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Na rua, pelo amor

“Oque não se espera acontece mais vezes do que o que se espera”, escreveu o dramaturgo Plauto. E tem ele razão. 


Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.

Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.

Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que mostra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração. 

Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.

Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.



Publicado originalmente em Notícias do Nordeste