Está tudo de pernas para o ar.
Ouçam o que vos digo. É a verdade. Custa, eu sei. Mas, é a verdade, e há que
dizê-la.
A tradição? Esqueçam isso. Nada é
intocável. Ainda ontem me deparei com a história do Capuchinho Vermelho toda
esfarrapada. Entravam sapos à procura de princesas, o Caçador tinha uma loja
com uma TV LED na parede, que passava documentários estilo BBC, a Capuchinho
era muito espertinha para uma miúda de 8 anos e o Lobo Mau era roxo…
Então pensei: “Bem, se os contos
infantis já foram estraçalhados pelos novos tempos, já nada mais há a perder.
Acabou. Tradição – 0 x Inovação – 1.”
“Que olhos grandes que tens avó!”.
Alto, pára tudo! Esta dica eu conheço. E segue o diálogo mais coisa menos coisa
como contou Charles Perrault. “E esse nariz enorme, avó?”. “É para melhor
cheirar o teu perfume”. “Da maneira que eu exagero, nem precisavas”. A resposta
não era a que eu esperava. Fez-me rir. E isso é um ponto favorável.
Segue o filme, aproxima-se o
clímax. Na casa da avó há telefone. É fixo, ao menos isso! Não há telemóveis
por lá, ou assim parece. A Capuchinho liga ao Caçador. Estamos na rota, amigos!
“Não vai haver ajuda, minha
menina!” – o Lobo Mau está decidido. “Olha ali atrás, os Três Porquinhos!”,
garota espera, como eu vos preveni, que assim se consegue safar.
Tudo acaba em bem, como se quer,
e sem cortes na barriga do Lobo Mau, que até tem direito, pelo contrário, a
ajuda para curar uma indigestão, causada por alimentos “com o prazo de validade
vencido”.
Este Lobo Mau roxo, que usa
calças de ganga, diz, a páginas tantas, algo que me deixa a pensar: “Os Lobos
também têm sentimentos.”
“Os Lobos também têm sentimentos”
abre um caminho sem precedentes, onde, no final das contas, os destinados a ser
maus sentem como se fossem bons. Ou menos maus. Sentem, enfim, é o que há a
reter. E sentir sentimentos é algo que torna, como por pós de perlimpimpim, os
maus em menos maus, quase bons, ou bons de verdade.
Esqueçam a tradição. Já não há
maus. Já não há bons. Tudo porque os, à partida, vilões, sentirem sentimentos,
e serem efectivamente capazes de tal feito, desequilibrou a balança, não só dos
contos infantis, como da vida em geral.
Sentir sentimentos não está,
contudo, ao alcance de todos. Ou não os expressam. E quando se sentem
sentimentos, queremos mais é expressá-los, não é? Quem não sente sentimentos
pode não ser mau, pode não ser bom. Certamente, é, sem gaguejos, menos humano.
Nesta nova versão, onde a
tradição se foi, há lugar para não-humanos? Existem tais criaturas, construídas
em betão e vestidas de indiferença?
A tradição garante que sim, e
tinha factos suficientes para o provar. Tinha bruxas más, madrastas más,
feiticeiros maus, irmãs invejosas (e más, pois). Tinha muitos, muitos que eram
absolutamente p’lo mal, e que nunca se emendaram. Agora que a tradição se foi,
as convicções afrouxaram.
Não sei de nada. Já não sei de
nada, até porque o Lobo Mau, como vos contei, era roxo. Roxo!
A tradição foi furada,
corrompida. O que faz com que, doravante, estejamos entregues aos novos tempos.
E a novas descobertas.
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