segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Tradição – palavra em desuso/remodelação. Risquem o que não interessa, e façam o vosso próprio título

Está tudo de pernas para o ar. Ouçam o que vos digo. É a verdade. Custa, eu sei. Mas, é a verdade, e há que dizê-la.
A tradição? Esqueçam isso. Nada é intocável. Ainda ontem me deparei com a história do Capuchinho Vermelho toda esfarrapada. Entravam sapos à procura de princesas, o Caçador tinha uma loja com uma TV LED na parede, que passava documentários estilo BBC, a Capuchinho era muito espertinha para uma miúda de 8 anos e o Lobo Mau era roxo…
Então pensei: “Bem, se os contos infantis já foram estraçalhados pelos novos tempos, já nada mais há a perder. Acabou. Tradição – 0 x Inovação – 1.”
“Que olhos grandes que tens avó!”. Alto, pára tudo! Esta dica eu conheço. E segue o diálogo mais coisa menos coisa como contou Charles Perrault. “E esse nariz enorme, avó?”. “É para melhor cheirar o teu perfume”. “Da maneira que eu exagero, nem precisavas”. A resposta não era a que eu esperava. Fez-me rir. E isso é um ponto favorável.
Segue o filme, aproxima-se o clímax. Na casa da avó há telefone. É fixo, ao menos isso! Não há telemóveis por lá, ou assim parece. A Capuchinho liga ao Caçador. Estamos na rota, amigos!
“Não vai haver ajuda, minha menina!” – o Lobo Mau está decidido. “Olha ali atrás, os Três Porquinhos!”, garota espera, como eu vos preveni, que assim se consegue safar.
Tudo acaba em bem, como se quer, e sem cortes na barriga do Lobo Mau, que até tem direito, pelo contrário, a ajuda para curar uma indigestão, causada por alimentos “com o prazo de validade vencido”.
Este Lobo Mau roxo, que usa calças de ganga, diz, a páginas tantas, algo que me deixa a pensar: “Os Lobos também têm sentimentos.”
“Os Lobos também têm sentimentos” abre um caminho sem precedentes, onde, no final das contas, os destinados a ser maus sentem como se fossem bons. Ou menos maus. Sentem, enfim, é o que há a reter. E sentir sentimentos é algo que torna, como por pós de perlimpimpim, os maus em menos maus, quase bons, ou bons de verdade.
Esqueçam a tradição. Já não há maus. Já não há bons. Tudo porque os, à partida, vilões, sentirem sentimentos, e serem efectivamente capazes de tal feito, desequilibrou a balança, não só dos contos infantis, como da vida em geral.
Sentir sentimentos não está, contudo, ao alcance de todos. Ou não os expressam. E quando se sentem sentimentos, queremos mais é expressá-los, não é? Quem não sente sentimentos pode não ser mau, pode não ser bom. Certamente, é, sem gaguejos, menos humano.
Nesta nova versão, onde a tradição se foi, há lugar para não-humanos? Existem tais criaturas, construídas em betão e vestidas de indiferença?
A tradição garante que sim, e tinha factos suficientes para o provar. Tinha bruxas más, madrastas más, feiticeiros maus, irmãs invejosas (e más, pois). Tinha muitos, muitos que eram absolutamente p’lo mal, e que nunca se emendaram. Agora que a tradição se foi, as convicções afrouxaram.
Não sei de nada. Já não sei de nada, até porque o Lobo Mau, como vos contei, era roxo. Roxo!
A tradição foi furada, corrompida. O que faz com que, doravante, estejamos entregues aos novos tempos. E a novas descobertas.



Publicado originalmente em: http://www.noticiasdonordeste.pt/

Imagem retirada de: https://www.youtube.com/watch?v=VADdBXzXSb4

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