quinta-feira, 3 de outubro de 2013

“Quero-te tanto como a comida quer o sal”

Qual selecção natural, desde os primórdios do ser humano, o Homem autodividiu-se em dois segmentos sentimentais – os que os vivem demais, e os que os vivem de menos. E agora que venha o Darwin explicar este acontecimento!
Temos muitas modalidades nesta área: os lamechas, os picuinhas, os melodramáticos, os durões, os desinteressados e, a minha preferida, os pseudo-desinteressados-que-querem-ser-durões, que são aqueles que fingem que nada lhes desperta interesse e que estão totalmente noutra frequência. Porém, na realidade só esperam que alguém os sintonize na M80, quando passa o the best of das baladas românticas.
Podemos culpar a sociedade, que nos tem cada vez mais ensinado a ser egoístas e frívolos. Podemos culpar a crise, que nos deixa deprimidos. Podemos culpar o vizinho do lado, que nos apanhou a namorar no portão de casa e nos fez ficar de castigo durante décadas. Mas não. Porque nem todos somos assim! Por isso não serve de desculpa. Por cada egoísta e frívolo existe alguém apaixonadamente altruísta. Para compensar os deprimidos da crise, temos empreendedores destemidos. E mesmo quando o vizinho lhes espetou o dedo na cara e os ameaçou de forma peremptória - “vou dizer aos teus pais!” -, alguns, com garra e convicção, gritaram “mas é amor, caramba!”.
Sei que é idílico, mas é um pensamento que gostaria de partilhar. Sejamos nós sinceros, capazes de falar do que sentimos e do que queremos, e o mundo será um lugar melhor – de verdade. Quando digo falar, entenda-se na medida certa. E depois transpor as palavras em acções. Acções francas, motivadas, direccionadas.
Um dia deveríamos ser todos capazes de dizer “amo-te”, “isto não me faz feliz”, “essa camisola fica-te horrível”, “despeço-me” e outras que tal que reprimimos por julgarmos que nos expomos demasiado se dissermos, que está fora do politicamente correcto ou que vão achar ridículo.
No inverso, muitos deveriam incorporar um travão e deixar de banalizar o que lhes atormenta a alma. Palavras repetidas vezes indeterminadas fazem com que percam o fôlego e a honestidade originais. Passam a ser ocas.  
É destes contrabalanços que se faz o mundo. Será porventura isso que o faz girar, ainda que de forma desengonçada às vezes. Cabe a cada um de nós mudar o nosso quinhão. Provavelmente está na altura de fazermos uma introspecção, escolher uma categoria e trilhar todo um caminho. O primeiro passo para descobrir os outros é, justamente, descobrirmo-nos a nós mesmos.
Quando era criança, havia um conto que elegia muitas vezes para a hora da sopa. Há poucos anos, com enorme alegria, reencontrei-o num livro de Alexandre Parafita. Nele, uma filha, a mais cândida de três irmãs, quando confrontada com qual a grandeza dos seus sentimentos pelo seu pai, respondeu simplesmente “quero-te tanto como a comida quer o sal.”
Para mim faz todo o sentido.
O amor é directamente proporcional à simplicidade e à naturalidade com que o expressamos.
Assim como tudo na vida. 


Publicado in Jornal Terra Quente

(coluna quinzenal - "Más línguas, boas conversas"

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